As novas regras de preços de transferência na MP 1152/22

Adoção de normas tributárias mais flexíveis requer muito mais do que consta na Medida Provisória

O presente artigo traz considerações iniciais sobre o novo sistema de preços de transferência, introduzido pela Medida Provisória 1152, de 28 de dezembro de 2022. Preciso confessar que, tendo contato com a matéria desde 1997, me senti órfão das margens de lucros pré-fixadas, dos safe harbors, dentre outros dispositivos expressamente previstos na Lei 9.430/96, que proporcionam segurança jurídica para o contribuinte e praticabilidade para o fisco federal.   

Pode parecer que a alegação da falta de segurança jurídica seja tolice, mas não o é. Um olhar mais atento e experiente para a realidade do contencioso sobre preços de transferência inevitavelmente leva a essa conclusão. Se o contribuinte trabalhava até então num cenário previsível de regras de preços de transferência e isso gerava a lavratura de autos de infração incompreensíveis e milionários, o que pode ocorrer num ambiente de nova norma antielisiva específica repleta de conceitos indeterminados, no qual o auditor fiscal, além de ter o ônus de instruir-se acerca da tributação internacional e do comércio exterior, ainda precisa conhecer a fundo o negócio desenvolvido pela pessoa jurídica fiscalizada?   

O sistema constitucional tributário brasileiro é rígido e não há motivo para vergonha ou complexo de vira-lata ao se afirmar isso. A adoção de regras tributárias mais flexíveis, dentro daquilo que se convencionou chamar de “padrão internacional”, requer muito mais do que aquilo que consta na MP. Faz-se necessária a supressão de inúmeras regras constitucionais que engessam o nosso sistema tributário para atender tal finalidade e esse é um problema que excede o escopo da medida.   

O governo anterior, com o objetivo de proporcionar o ingresso do Brasil na OCDE, optou por adotar regras de preços de transferência mais flexíveis, ainda que o nosso sistema constitucional tributário seja rígido. Ainda existe o problema do imposto de renda pago no Brasil que deixou de ser creditável nos EUA (foreign tax credit) porque as novas regras americanas exigem que legislação estrangeira determine a base de cálculo do imposto de renda com base no princípio arm’s length. O governo recém-empossado ainda não se manifestou. A MP será convertida em lei? Ninguém sabe, mas vale analisar alguns pontos positivos e negativos que chamam a atenção no texto legal.  

A MP privilegia o princípio arm’s length, que passa a ser inclusive conceituado (artigo 2º). De longa data, defendemos que o referido princípio está relacionado à prevalência da substância sobre a forma, ao valor justiça e ao princípio da capacidade contributiva[1]. Contudo, a Lei 9.430/96 afasta-se do preço de plena concorrência quando privilegia a economia fiscal (escolha do melhor método para o contribuinte).   

A leitura da MP e de sua exposição de motivos também passa a impressão, em diversas partes, de ter sido feita uma tradução quase literal das diretrizes da OCDE sobre preços de transferência (OECD Transfer Pricing Guidelines). O que seria, no nosso ordenamento jurídico, um “arranjo” para fins de identificação da operação controlada? O artigo 3º da MP distingue os contratos em relação aos arranjos, mas o §2º do artigo 4º, ao tratar do termo “entidade”, fala de “quaisquer arranjos contratuais ou legais”, o que leva a entender que o arranjo é indissociável da lei ou do contrato, como acontece na figura do consórcio, que “não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato (Lei 6.404/76, artigo 278, §1º). É importante ressalvar que a referência aqui é a do consórcio internacional (uma parte relacionada no Brasil e outra no exterior), e não daquele constituído apenas no Brasil, como acontece nas atividades de exploração e produção de petróleo (Lei 9.478/97, artigo 39).   

Não há problema em importar conceitos estrangeiros, desde que devidamente adaptados ao nosso sistema constitucional[2]. 

Para fins do conceito de partes relacionadas, a influência indiretamente exercida por outra parte (artigo 4º, caput da MP) abrange a sociedade controlada indireta no exterior? A legislação atual não indica isso e parece que o alcance do controle indireto não faz sentido, mas fica a dúvida.  

O §1º do artigo 7º da MP traz a regra segundo a qual “no delineamento da transação controlada serão consideradas as opções realisticamente disponíveis para cada uma das partes da transação controlada, de modo a avaliar a existência de outras opções que poderiam ter gerado condições mais vantajosas para qualquer uma das partes e que teriam sido adotadas caso a transação tivesse sido realizada entre partes não relacionadas, inclusive a não realização da transação”.

O dispositivo é bastante pedagógico porque a parte relacionada deve sempre se perguntar, por exemplo, se faria uma cessão de direito a título gratuito para uma parte que não é relacionada. Isso porque é pouco provável que uma pessoa jurídica abra mão de uma vantagem ou se submeta a uma obrigação a título gratuito. O artigo 7º, §1º deve ser interpretado em conjunto com o artigo 27, que trata da reestruturação de negócios. Aliás, esse racional existe desde sempre na legislação em vigor (Lei 9.430/96), tendo em vista que as regras de preços de transferência também se aplicam aos direitos, além de bens e serviços.   

A MP determina que o método Preço Independente Comparável (PIC) será considerado o mais apropriado quando houver informações confiáveis de preços ou valores de contraprestações decorrentes de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas (artigo 11, §2º). O conceito de “informação confiável” poderá ser utilizado para fins de desconsideração de outro método que venha a ser adotado pelo contribuinte. Vale destacar que o conceito de método apropriado é bastante elástico (artigo 11, §1º).  

A MP prevê um conceito expresso de commodity para fins de preços de transferência (artigo 12, inciso I), mas isso deverá ser feito às custas da supressão da atual lista de commodities prevista no Anexo I da IN RFB 1.312/2012, o que causará insegurança jurídica no contribuinte.    

A MP andou bem ao regular as transações com intangíveis, inclusive conceituando distinguindo intangível e intangível de difícil valoração (artigo 20, incs. I e II, respectivamente), assim como as operações financeiras (artigos 18 a 34). Com relação aos serviços intragrupo, em que pese o artigo 11, §2º determinar que o método PIC será considerado o mais apropriado quando houver informações confiáveis de preços ou valores de contraprestações decorrentes de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas (regra geral), o artigo 25 aparece como norma específica a sugerir que o método de preço de transferência mais apropriado para serviços intragrupo será o do Custo Mais Lucro (MCL). A MP não possui menção expressa nesse sentido, mas a interpretação sistemática leva a tal entendimento. Se houver sua conversão em lei, será necessário explicitar qual o método mais adequado para os serviços intragrupo.   

Na prática internacional, os preços de transferência se aplicam aos contratos de compartilhamento de custos, tal como agora previsto no artigo 26 da MP, mas entendo que o custo é inconfundível com preço ou acréscimo patrimonial[3]. Preço pressupõe custo somado a lucro. O IRPJ e a CSLL incidem sobre o acréscimo patrimonial. Não vejo como submeter o contrato de compartilhamento de custos à regra antielisiva específica de transfer price. Obviamente, o valor que não corresponder ao custo efetivo terá natureza de prestação de serviço e se submeterá aos preços de transferência, não pelo artigo 26, mas pelo artigo 24 (serviços intragrupo).   

Pelo exposto acima, parece que o artigo 26 é inconstitucional porque as regras de preços de transferência combatem a alocação artificial de base tributável para outras jurisdições e o custo presente no contrato de compartilhamento de custos é o oposto do acréscimo patrimonial. Além de inconstitucional, o dispositivo, na forma como está redigido, é bastante truncado. Novamente: não há problema em importar conceitos estrangeiros, desde que devidamente adaptados ao nosso sistema constitucional.    

O artigo 46, caput da MP prevê que o contribuinte poderá optar pelas regras de preços de transferência para o ano-calendário de 2023. O artigo 48 faz uma confusão ao prever que a MP entra em vigor em 1º de janeiro de 2024, mas que “Aos contribuintes que fizerem a opção prevista no artigo 46, aplicam-se, a partir de 1º de janeiro de 2023: I – os artigo 1º a artigo 45; e II – as revogações previstas no artigo 47”. Ora, desde quando uma opção do contribuinte faz uma norma tributária ser aplicada retroativamente? Perceba-se que as regras de preços de transferência são capazes de alterar as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, que são tributos cujos fatos geradores são complexivos. Nesse sentido, para que possa ser aplicada em 2023, a nova norma precisa obedecer a noventena da CSLL e respeitar a anterioridade do IRPJ. Logo, precisa entrar em vigor até 2 de outubro de 2023. A redação do artigo 48, tal como está, viola princípios básicos da Constituição Federal de 1988. 

Ademais, ainda que conste na exposição de motivos da MP que uma das principais justificativas para a urgência do ato decorre da recente alteração na política tributária dos EUA, que deixou de permitir o crédito tributário referente aos impostos pagos no Brasil devido aos desvios existentes no sistema de preços de transferência brasileiro em relação ao princípio arm’s length, a entrada em vigor da MP apenas em 1º de janeiro de 2024 põe em cheque o requisito da urgência ínsito à natureza deste ato legal.   

Diversos outros pontos da MP ainda merecem análise, o que será objeto de análises futuras. Por enquanto, as conclusões possíveis são:

  • a) as novas regras de preços de transferência têm o poder de aumentar a arrecadação de IRPJ e CSLL, através do combate à erosão da base tributável e transferência de lucros (Base Erosion and Profit Shifting – BEPS);
  • b) ainda que a MP se esforce em apresentar instrumentos de segurança jurídica (como, por exemplo, consulta semelhante aos Advanced Pricing Arrangements – APAs), não é verdade que o contribuinte doméstico estará num cenário mais previsível, ainda mais diante de inúmeros conceitos indeterminados ali presentes;
  • c) caso exista conversão da MP em lei, serão necessários maior especificação e esclarecimentos no próprio texto legal;
  • d) a Receita Federal deve regulamentar diversos pontos da nova lei (vide, por exemplo, o artigo 11, §4º da MP), o que não representa um cheque em branco para, via instrução normativa, preencher todos os conceitos indeterminados ali presentes, porque as bases tributárias do IRPJ e da CSLL têm que respeitar o princípio da legalidade e não há ato infralegal ou manifestação de organização internacional que afaste a necessidade de observância dos princípios constitucionais previstos na Constituição Federal de 1988.

[1] ÁVILA, Márcio. Preços de Transferência na Indústria do Petróleo. Rio de Janeiro: Interciência, 2010, p. 8-9.  

[2] A respeito do tema: ÁVILA, Márcio. A Constitucionalização do Direito Tributário Internacional. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015.  

[3] ÁVILA, Márcio. Preços de Transferência na Indústria do Petróleo. Rio de Janeiro: Interciência, 2010, p. 94.

Fonte: JOTA

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