ICMS na transferência entre estabelecimentos gera insegurança jurídica para os contribuintes

Dando continuidade ao projeto “Observatório de Jurisprudência do TIT-SP”, a segunda fase dos estudos tem como objetivo o monitoramento das decisões proferidas pela Câmara Superior a partir do ano de 2019, sobre diversos temas.

No presente artigo, será analisado acórdão proferido pela Câmara Superior em 8 de abril de 2022, nos autos do processo DRT 04 4.060.549-8, que tratou da incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. O julgamento foi o primeiro identificado após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter concluído as discussões de mérito sobre a questão, tanto pelo julgamento do ARE n° 1.248.886, objeto do Tema 1.099, quanto pelo julgamento da ADC 49/RN.

Após o encerramento do julgamento do Tema 1.099, o assunto foi tratado nesta segunda fase de monitoramento das decisões do TIT[1], momento em que foram abordadas as razões de decidir que levaram o Supremo a fixar a tese de que “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”. Naquela oportunidade, indagou-se se a Câmara Superior, em seus próximos julgamentos, iria aderir ao entendimento consolidado pelo STF, em repercussão geral.

A resposta, infelizmente, ainda é negativa. Embora o tema não seja nada novo, a resistência da Câmara Superior em aplicar o entendimento, que há décadas é uníssono nos tribunais superiores, está pautada nos possíveis desdobramentos da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 49 do Rio Grande do Norte.

Com efeito, em abril de 2021, o STF, ao julgar a ADC n.º 49/RN, ratificou o entendimento fixado no ARE nº 1.255.885 com repercussão geral reconhecida (Tema 1099), confirmando a inconstitucionalidade da incidência do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica.

Em razão de todas as implicações práticas e temporais inerentes ao julgamento em questão, foram opostos embargos de declaração pelo estado do Rio Grande do Norte, para discutir, além de outras questões[2], a modulação dos efeitos da decisão. Após discussão em plenário virtual, em dezembro de 2021, foram apresentadas três correntes para uma possível modulação de efeitos da decisão proferida na ADC 49/RN:

  1. o ministro Edson Fachin posicionou-se no sentido de que os efeitos da decisão deveriam ser aplicados a partir do próximo exercício financeiro, o que foi seguido pela a ministra Cármen Lúcia e o ministro Ricardo Lewandowski;
  2. o ministro Dias Toffoli propôs que a decisão produza efeitos após 18 meses, contados da publicação da ata de julgamento dos embargos de declaração, ressalvadas as ações judiciais propostas até a ata de julgamento do mérito da ADC, tendo sido acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux; e
  3. o ministro Barroso, por sua vez, posicionou-se no sentido de que os estados deveriam regulamentar a transferência de créditos entre estabelecimentos, sob pena de a omissão neste aspecto violar o direito dos contribuintes. Nesta corrente, ficariam ressaltavas as discussões administrativas e judiciais pendentes de conclusão desde o julgamento da decisão de mérito.

Frente à impossibilidade de formação de quórum para modulação dos efeitos da decisão[3], o ministro Gilmar Mendes pediu destaque, o que levaria o julgamento ao plenário físico e o seu reinício. Contudo, o ministro Gilmar Mendes desistiu do destaque nos embargos de declaração, de modo que o julgamento deverá prosseguir da forma que se encontra, o que significa que, se nenhum ministro alterar os votos já proferidos, a decisão não será modulada. Até o momento, não há qualquer previsão de reinclusão do processo em pauta.

Pois bem. No caso analisado recentemente pela Câmara Superior — AIIM n.º 4.060.549-8 —, o ponto central do recurso especial da Fazenda tratava justamente da incidência do ICMS em operações de transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. Embora o mérito desta questão já esteja mais do que pacificado, conforme visto acima, a Câmara Superior, por maioria, entendeu pela manutenção da autuação fiscal.

No voto vencido, conduzido pela juíza Maria do Rosário Esteves, foi negado provimento ao recurso especial da FESP, tendo em vista o entendimento acerca da inconstitucionalidade da exigência do ICMS sobre o mero deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, firmado em repercussão geral pelo STF e na ADC nº 49/RN. Foi consignado que, há muito, o STJ já havia pacificado o entendimento a favor dos contribuintes por meio da Súmula nº 166, o que foi corroborado pelo STF nos julgamentos mais recentes.

Em relação à possível modulação da decisão proferida pelo Supremo, a juíza relatora muito bem destacou que, embora o pedido formulado ainda esteja pendente de análise nos embargos de declaração, o mérito da questão já foi pacificado, devendo, por esta razão, ser seguido pelo tribunal administrativo.

Para aplicar o entendimento firmado pelo Supremo, foi destacado que, embora o art. 28, da Lei 13.457/2009, impossibilite o afastamento da aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, há exceção nas hipóteses e que a inconstitucionalidade tenha sido declarada pelo Supremo Tribunal Federal, em controle concreto ou abstrato, como ocorreu no caso em tela (ADC 49). Além disso, foi suscitada a aplicação do artigo 927, do CPC, segundo o qual os juízes e tribunais devem observar as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade e os julgamentos de recursos extraordinários representativos de controvérsia.

O voto vencedor, proferido pelo juiz Valério Pimenta de Morais, por sua vez, adotou o posicionamento no sentido de que efeitos jurídicos da ADC n.º 49/RN são inaplicáveis ao caso concreto, vez que a Corte Suprema sinalizou a possível modulação de efeitos da decisão de forma prospectiva. Por este motivo e considerando que o julgamento no STF ainda não foi concluído, a Câmara Superior entendeu que as administrações tributárias estaduais continuarão a promover a exigência fiscal dos contribuintes o ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, por força do artigo 142, do Código Tributário Nacional.

Para sustentar o provimento do recurso especial da FESP, foi suscitado, ainda, o dever público de promover a segurança jurídica, veiculado pelo artigo 30, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), bem como a manifestação da Consultoria Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, que, em 27 de setembro de 2021, por meio da Resposta à Consulta nº 24375, posicionou-se no sentido de que, enquanto não proferida a decisão final referente aos embargos de declaração opostos na ADC 49, permanecem aplicáveis as disposições legais condicionantes ao correto aproveitamento do crédito nas transferências entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo titular.

Concluiu, por fim, com base em diversos princípios jurídicos diretamente relacionados à matéria — indisponibilidade do interesse público, natureza vinculada da administração tributária, razoabilidade, interpretação restrita — que, neste momento, há força normativa suficiente para a incidência do imposto nas operações entre estabelecimentos do mesmo titular.

O julgamento foi encerrado com 10 votos contrários à aplicação do entendimento firmado em repercussão geral e na ADC n.º 49/RN e 5 votos a favor da aplicação, sendo totalmente restabelecida a autuação fiscal no item que tratava desta questão.

Como visto, embora o entendimento firmado pela maioria da Câmara Superior tenha se socorrido do artigo 30, da LINDB, que trata da segurança jurídica como forma de atuação das autoridades públicas, nada foi tratado sobre o teor do artigo 24 do mesmo diploma legal, que, em resumo, dispõe que a revisão de atos da administração pública deve considerar a jurisprudência judicial vigente, garantindo a segurança jurídica por meio da uniformidade jurisprudencial[4].

Importante lembrar, ainda, que o § 2º do art. 102 da CF/88 atribui eficácia contra todos e efeito vinculante às decisões definitivas de mérito do STF em ADI e em ADC, que devem ser aplicadas não apenas pelo Poder Judiciário, mas também pela administração pública. Tampouco foi considerado na decisão ora em análise o artigo 15 do Código de Processo Civil, que determina a aplicação de suas normas de forma supletiva e subsidiária aos processos administrativos, o que, consequentemente, atrai a aplicação da Teoria dos Precedentes, positivada no artigo 927, do mesmo código, aos processos que tramitam no Tribunal de Impostos e Taxas.

Diante da ausência de previsão para que o Supremo julgue os embargos de declaração opostos na ADC 49/RN — sobretudo com a desistência do pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes —, é provável que o entendimento fixado no AIIM n.º 4.060.549-8 persista por um longo período na Câmara Superior do TIT, gerando maior insegurança jurídica tanto aos contribuintes quanto ao estado, que será fatalmente onerado com a posterior judicialização de tema cuja matéria está pacificada há décadas.

Autoria:

Maria Aline Buratto Aun

Coordenação Geral:

Eurico Marcos Diniz de Santi

Eduardo Perez Salusse

Kalinka Bravo

Lina Santin

 

Fonte: Jota

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