ICMS na transferência entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica: mas e o crédito?

Discussão sobre ‘efeito de recuperação’ e seu impacto na não cumulatividade do ICMS volta ao centro das atenções

Um tema que, atualmente, chama a atenção em relação ao ICMS é a questão da não incidência nas transferências entre estabelecimentos pertencentes à mesma pessoa jurídica.

Como amplamente noticiado na imprensa, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 49 decidiu, em 2021, entendeu que o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador de incidência do ICMS, uma vez que a hipótese de incidência do tributo é a operação jurídica que acarreta uma mudança de titularidade da mercadoria. Dessa forma, a mera transferência entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica não estaria sujeita ao ICMS, uma vez que não ocorreria uma efetiva mudança de titularidade jurídica da mercadoria, objeto da operação, mas um mero deslocamento físico.

Entretanto, o ministro Edson Fachin não tratou da questão relativa aos efeitos que isso pode gerar em relação ao crédito de ICMS. Esse efeito é importante porque, nos termos do art. 155, § 2º, II, alínea b, da Constituição Federal, a saída de mercadoria não sujeita ao ICMS (como é o caso ora em análise), acarretaria a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Sendo assim, caso venha a ser aplicada a decisão da ADC 49, sem a consideração dos efeitos que isso pode gerar para os créditos de ICMS, deverá haver o estorno de todo o crédito relativo às operações anteriores, caso o estabelecimento venha a promover uma transferência para outro pertencente à mesma pessoa jurídica.

Por conta disso, uma das questões que estão sendo discutidas nos embargos de declaração, que foram opostos contra essa decisão, além da modulação dos seus efeitos, é exatamente o efeito que a não incidência do ICMS nas transferências pode gerar para os créditos de ICMS.

Acontece que, ao contrário do que ocorreu com o julgamento do mérito da ADC 49, no qual bastou uma mera sessão (semanal) de julgamento virtual para a sua finalização, a análise dos seus embargos de declaração está sendo objeto de idas e vindas no plenário virtual por conta de inúmeros pedidos de vista, sendo o último deles feito pelo ministro Nunes Marques, em 2 de maio de 2022.

Até o momento, o que se observa é uma incerteza a respeito do entendimento que será seguido pelo Supremo Tribunal Federal em relação ao tratamento dos créditos, como destacado no excelente texto de Bárbara Mengardo, publicado recentemente neste portal[1].

Nesse contexto, trazemos à discussão, ainda que de maneira breve, a importância da transferência do crédito acumulado de ICMS do remetente para o destinatário, nos casos em que não ocorre a incidência do imposto, por se tratar de saída entre estabelecimentos do mesmo titular.

Esse ponto foi muito observado pelo ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto no julgamento dos embargos de declaração na ADC 49. Em suas palavras:

“16. (…) Para o respeito à não cumulatividade do ICMS, portanto, é imperioso que se faculte aos sujeitos passivos a transferência de créditos entre os estabelecimentos de mesmo titular, de maneira a manter a não cumulatividade ao longo da cadeia econômica do bem.

17. Observe-se que há uma situação bastante peculiar no caso em questão. Não restam dúvidas sobre a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular. Ao mesmo tempo, essa declaração de inconstitucionalidade em si gera um vácuo normativo, já que inexistem normas que disponham sobre a transferência de créditos entre tais estabelecimentos, tal como ocorria na sistemática anterior. Esse fato gera uma nova inconstitucionalidade, em decorrência da violação à não cumulatividade do ICMS. Em outras palavras, a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 11, § 3º, II; 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”; e 13, § 4º, todos da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, não restaura o estado de constitucionalidade. Não por outra razão muitos contribuintes requerem nesta ação, inclusive, a possibilidade de continuar recolhendo o ICMS sobre tais operações, de modo a transferirem os créditos respectivos.”

Como destacou o ministro, a impossibilidade de transferência do crédito do remetente para o destinatário da mercadoria, gera uma nova inconstitucionalidade, em virtude da violação à não cumulatividade do ICMS.

Essa questão não é nova em nosso ordenamento jurídico, pois, como já ensinava o mestre Alcides Jorge Costa, em seu clássico “ICM na Constituição e na Lei Complementar”[2], uma isenção no meio do ciclo a que está sujeito o produto, caso não seja transportado o crédito para o destinatário da mercadoria, gera o chamado “efeito de recuperação”, gerando, na verdade, o aumento da carga tributária incidente sobre a cadeia de comercialização da mercadoria, uma vez que o próximo ente da cadeia, que irá promover uma saída tributada, não terá direito a abater o imposto incidente nas operações anteriores à isenção. Entendemos que o mesmo efeito pode ser aplicado no caso de não incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular.

Por conta disso, como lembra André Mendes Moreira[3], o Supremo Tribunal Federal, na década de 1970 e no início da década de 1980, entendia que, nas saídas isentas do ICM (antigo ICMS), o contribuinte da mercadoria tinha direito a um “crédito presumido”, de maneira a permitir o abatimento dos créditos como se o tributo houvesse incidido na etapa anterior. Isso porque a negativa de creditamento feriria a não cumulatividade tributária e, ademais, tornaria ineficaz a própria isenção concedida, pois o adquirente acabaria pagando o imposto sobre o produto isento. Moreira cita algumas decisões nesse sentido, tais como o RE 78.589/SP (DJ 04/11/1974) e o RE 94.177/SP (DJ 28/05/1981).

Entretanto, essa regra foi alterada com a publicação da Emenda Constitucional 23/83, conhecida como Emenda Passos Porto, que contrariou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, destacada acima, passando a impedir que o destinatário da mercadoria isenta se creditasse das operações anteriores[4], regra essa que foi mantida na Constituição Federal de 1988, com o já mencionado art. 155, § 2º, II.

Diante do contexto do reconhecimento da não incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular, essa discussão a respeito do “efeito de recuperação” e seu consequente efeito na não cumulatividade do ICMS volta ao centro das atenções, em especial por conta de sua afronta à neutralidade que será claramente afetada, caso não seja possível a transferência de créditos para o destinatário da mercadoria transferida, como foi destacado pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Dessa forma, entendemos ser importante que, quando voltar à pauta o julgamento dos embargos de declaração na ADC 49, os ministros consigam chegar a uma conclusão definitiva a respeito dessa questão relativa à transferência dos créditos para o destinatário, sob pena de violação à não cumulatividade do ICMS.


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/a-necessaria-suspensao-do-julgamento-da-adc-49-03052022, acessado em 06/05/2022.

[2] COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1978, p. 27.

[3] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2 ed. São Paulo: Noeses, 2012, pp. 144-145.

[4] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2 ed. São Paulo: Noeses, 2012, pp. 147-149.

 

SERGIO VILLANOVA VASCONCELOS – Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário na PUC-SP e advogado no ButtiniMoraes Advogados

Fonte: Jota

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