Prebendas: O provento de religiosos passou a ser tributado?

Debate é relevante, mas nada trivial, e será mais fácil enfrentá-lo deixando os fantasmas de fora

Há poucos dias, a Receita Federal decidiu suspender um ato praticado pelo governo Bolsonaro às vésperas da eleição de 2022. Trata-se do “ato declaratório interpretativo” (ADI) 1, que dispunha sobre a não incidência de contribuição previdenciária sobre as “prebendas” – valores pagos pelas organizações religiosas a seus integrantes, como padres e pastores, em razão do ofício religioso ou para sua subsistência.

À direita e à esquerda, muitos entenderam que, com isso, o governo Lula teria revogado o benefício fiscal, supostamente criado pelo tal ADI do governo Bolsonaro. Com base nesse pressuposto, uns condenaram a decisão, vista como uma perseguição aos cristãos; outros a aplaudiram, por colocar fim ao que interpretaram como um privilégio indevido.

No entanto, vamos aos fatos: nem Bolsonaro criou o benefício, nem Lula acabou com ele.

A não incidência de contribuição previdenciária sobre as prebendas está prevista na legislação brasileira há pelo menos 23 anos. Foi em 2000, durante o governo FHC, que a Lei 10.170 incluiu um novo § 13 ao art. 22 da Lei 8.212/1991 para deixar claro que os valores pagos a título de prebenda não caracterizam “remuneração” e, portanto, não estão sujeitos à contribuição previdenciária. A única condição é a de que os valores não estejam atrelados à natureza (tipo de tarefa) e à quantidade do trabalho executado.

Em 2015 — governo Dilma — a Lei 8.212 foi novamente alterada (pela Lei 13.137). Desta vez, agregou-se mais um parágrafo (§ 14) ao art. 22 para assegurar que a prebenda possa ser paga “de forma e montante diferenciados”. Com isso, ampliou-se o leque de opções à disposição das organizações religiosas para o pagamento de seus integrantes, que não necessariamente precisam receber os mesmos valores.

Ainda assim, ficou a dúvida: forma e montante diferenciados com base em quê? Provocada por uma organização religiosa, a Receita Federal então divulgou em 2018 — governo Temer — uma solução de consulta (6 – Cosit) esclarecendo que a diferenciação poderia estar fundada nos mais variados critérios, contanto que não relacionados à natureza e quantidade do trabalho. Por isso, entendeu ser legítimo, no caso, que o montante variasse de acordo com “particularidades, características ou atributos do religioso”, tais como estado civil, antiguidade, grau de escolaridade ou número e idade de filhos.

Cabe registrar que a consulta é um instrumento utilizado quando há dúvida sobre como a Receita Federal interpreta certos dispositivos da legislação tributária. Quando solucionada pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), o entendimento nela refletido é “vinculante”, ou seja, precisa ser seguido por todos os fiscais da Receita.

Dois anos se passaram e, em 2020, já no governo Bolsonaro, a Lei 14.057 inseriu um adicional parágrafo (§ 16) ao art. 22. Desta vez, o objetivo foi explicitar que a alteração promovida no governo Dilma se aplicava inclusive a fatos pretéritos, seguindo princípios estabelecidos no Código Tributário Nacional (CTN). De quebra, aproveitou para declarar nulas todas as autuações que haviam deixado de observar o disposto no § 14.

Pois bem, e o que fez o governo Bolsonaro em 2022? Já no contexto eleitoral, editou um ADI — instrumento destinado a uniformizar o entendimento na administração tributária sobre normas já existentes — que reafirmava o que, em essência, já constava da legislação e da solução de consulta 6 – Cosit. De acordo com o ato, a “existência de diferenciação quanto ao montante e à forma nos valores despendidos com os ministros e membros, […] que pode ocorrer em função de critérios como antiguidade na instituição, grau de instrução, irredutibilidade dos valores, número de dependentes, posição hierárquica e local do domicílio, não caracteriza esses valores como remuneração sujeita à contribuição [previdenciária]”.

Do ponto de vista jurídico, portanto, o ADI não representou nenhuma grande novidade. Ainda assim, gerou um fato político que teve significativa repercussão à época.

Agora, já no governo Lula, esse ADI foi suspenso, conforme proposto pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), até porque se desconhecem os motivos jurídicos que levaram à sua adoção (o ato não foi acompanhado da necessária Exposição de Motivos). No entanto, a Lei 8.212 continua vigente — assim como, aliás, a mencionada solução de consulta 6 – Cosit, da qual os fiscais da Receita Federal não podem se desviar. Portanto, as prebendas, ainda que pagas de forma e montantes diferenciados, continuam não alcançadas pela contribuição previdenciária. A situação das organizações religiosas não foi agravada pela suspensão do ADI.

Certo ou errado, esse benefício fiscal é muito mais obra dos governos FHC e Dilma do que do governo Bolsonaro. E o governo Lula, se quiser revê-lo ou aperfeiçoá-lo, precisará contar com apoio do Congresso Nacional, pois isso possivelmente envolverá alteração de lei.

Esse é um debate relevante, mas nada trivial. Será mais fácil enfrentá-lo deixando os fantasmas de fora.

Fonte: JOTA

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