Reforma do imposto de renda e revogação dos JCP: o Brasil na contramão da Europa

Normas de países europeus e nova proposta da UE também visam limitar viés de endividamento oriundo da tributação sobre a renda.

No contexto das discussões a respeito da reforma da tributação sobre a renda, os Juros sobre o Capital Próprio (JCP) vêm sendo apontados como um “privilégio” – ou, ainda, um “benefício fiscal” – desprovido de qualquer justificativa, a não ser privilegiar um grupo seleto de empresas e de investidores.

Do ponto de vista tributário, os JCP, pagos aos sócios e acionistas das empresas, representam uma despesa dedutível na apuração da base de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (IRPJ) e da contribuição social sobre lucro líquido (CSLL) devidos pela empresa.

Os JCP são calculados a partir da aplicação da taxa de juros de longo prazo (TJLP) sobre as contas do patrimônio líquido, listadas pelo artigo 9º da lei 9.249/1995, desde que observados os limites previstos pelo mesmo dispositivo.

Sendo um mero “benefício fiscal”, a solução para o aumento de arrecadação seria simples: revogar os JCP. E foi exatamente nesse sentido que o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de lei (PL) 4.258/23, para acabar com sua dedutibilidade a partir de 2024.

No entanto, longe das emoções do acalorado debate político, uma análise séria e técnica a respeito dos JCP revela que o instituto cumpre uma importante função no sistema tributário brasileiro: reduzir o viés que favorece o endividamento das empresas brasileiras.

Esse viés não é um problema exclusivo do sistema tributário brasileiro. De fato, todos os sistemas que tributam a renda empresarial lidam com um incentivo natural que existe a favor do investimento empresarial por meio do capital oneroso (empréstimos) quando comparado ao investimento em capital próprio (aporte de recursos do sócio na forma de aumento de capital social). No primeiro caso, o investidor se torna um mero credor; no segundo, um efetivo sócio da empresa investida.

Sob a perspectiva tributária das empresas, os juros (isto é, a remuneração devida ao investidor-credor) são uma despesa operacional que é dedutível na apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. No total, o efeito da dedução em termos de redução dos tributos devidos corresponde a 34% (alíquota combinado do IRPJ e da CSLL) do valor dos juros pagos.

Para o investidor, os juros oferecem a oportunidade de auferir uma remuneração periódica e certa sobre o capital investido, que não depende de deliberação societária e tampouco fica condicionada ao sucesso do empreendimento.

Por outro lado, os dividendos ou lucros distribuídos (a remuneração devida ao sócio-investidor) não propiciam semelhante vantagem à empresa investida, haja vista que os referidos rendimentos não são uma despesa operacional, e, portanto, não podem ser deduzidos na apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Além disso, sob o aspecto negocial, o investidor que aporta recursos na sociedade na forma de contribuição ao capital social, como qualquer outro sócio, incorre em todos os riscos inerentes ao negócio, de modo que não pode contar com uma remuneração certa e periódica sobre os valores investidos.

O Congresso buscou corrigir o viés pró-endividamento decorrente dessa distinção de tratamentos tributários entre juros e dividendos em 1995, por meio de duas medidas: isenção de dividendos, concentrando a tributação na pessoa jurídica mediante uma alíquota (34%) mais elevada que a média dos demais países; lucros distribuídos por empresas brasileiras e a possibilidade de dedução de JCP.

Portanto, está claro que os JCP não representam um odioso benefício fiscal destinado a aumentar a lucratividade das empresas e investidores brasileiros, mas, ao contrário, são um importante instrumento para reduzir as assimetrias tributárias que acabam por privilegiar o financiamento empresarial por meio do capital de terceiros (na forma de dívida) em detrimento do capital próprio.

Além disso, longe de ser uma “jabuticaba brasileira” inventada e adotada exclusivamente em terras tupiniquins, a preocupação com instrumentos para neutralizar o custo de oportunidade do investidor tem sido discutida em outros países.

Mecanismo na União Europeia

Na União Europeia, diversos países (Portugal, Chipre, Bélgica, Polônia, Itália e Malta) têm na legislação distintas formas de cálculo de juros nacionais dedutíveis da base de cálculo dos tributos incidentes sobre a renda corporativa (os chamados notional interest deduction – NID).

As normas adotadas pelos países possuem desenhos distintos, ora permitindo o cálculo das despesas a deduzir tomando por base o valor total das contas de patrimônio líquido da empresa (full amount method, como ocorre com o JCP), ora permitindo que o cálculo seja feito a partir do incremento verificado de um ano para o outro nas contas do patrimônio líquido (incremental method).

É possível citar, como exemplo, as NID previstas nos ordenamentos belga e italiano. Na Bélgica, as NID foram introduzidas em 2006 e, originalmente, eram calculadas sobre o valor total das contas patrimoniais; posteriormente, numa transição, o montante a ser deduzido passou a ser calculado a partir do valor incremental das contas do patrimônio líquido ajustadas.

A taxa de juros (notional interest rates) varia anualmente, a depender das taxas de juros aplicáveis sobre os títulos públicos de dívida, havendo, ainda, limites objetivos a serem observados na sua fixação.

Na Itália, as NID foram introduzidas em 2011, com fundamento na metodologia incremental. As taxas de juros aplicáveis também são determinadas anualmente e definidas com base em taxas publicadas pelo Estado. A variação do patrimônio líquido não pode ser superior ao valor do patrimônio líquido no referido ano.

As NID não são idênticas ao JCP. Diferentemente dos JCP, as NID não pressupõem um pagamento ao sócio como condição para que se opere a dedutibilidade na apuração dos impostos sobre a renda corporativa. Sua dedutibilidade é feita anualmente com base em taxas de juros divulgadas pela administração fiscal.

Em que pese a existência de diferenças de metodologia de apuração e de mecanismos de dedução, fato é que as NID são instrumentos equivalentes ao JCP e suas diferenças decorrem de questões que envolvem desde uma maior maturidade do sistema tributário de cada país, quanto a realidade macroeconômica local.

E, considerando a crescente preocupação dos países europeus com o endividamento de suas empresas – bastante intensificado na Europa a partir da pandemia –, bem como o receio de que os Estados-membros da União Europeia viessem a adotar normas de NID não uniformes, como forma de subvenção governamental (state aid), a Comissão Europeia apresentou uma proposta diretiva para estabelecer regras relativas à dedução para reduzir a distorção dívida-capital e à limitação da dedutibilidade dos juros no imposto sobre o rendimento das empresas (“Proposta de Diretiva DEBRA”).

A proposta da diretiva possui dois componentes fundamentais: o primeiro consiste na introdução de um ACE (allowance on corporate equity), cuja base de cálculo corresponde à diferença entre o valor do patrimônio líquido apurado no final do período de apuração (ano-calendário) e o valor do patrimônio líquido apurado ao final do período de apuração anterior.

O texto define patrimônio como sendo o resultado da soma do capital social, das contas de reservas, inclusive ágio e reavaliação, e lucros ou prejuízos acumulados, e patrimônio líquido como correspondendo à diferença entre o valor do patrimônio do contribuinte e a soma das suas participações no capital de outras empresas e das suas próprias ações.

Esse ajuste ao valor do patrimônio tem por finalidade assegurar que não haja o “efeito cascata” do benefício do ACE no grupo societário que, do contrário, haveria caso os investimentos relativos às participações societárias (frequentemente contabilizados pelo método da equivalência patrimonial) fossem replicados por toda a cadeia de controle.

A taxa de juros é calculada tomando-se por base o prazo de dez anos, acrescida de uma taxa de juros ajustada ao risco que poderá variar entre 1,0% e 1,5%, a depender das características do contribuinte em questão. A Comissão Europeia, no entanto, possuirá competência para alterar a taxa de juros ajustada ao risco.

Uma vez que o ACE seja concedido para determinado ano-calendário, a proposta de diretiva prevê a possibilidade de dedução, no ano em questão, e durante os nove anos subsequentes, totalizando dez anos. Na perspectiva da Comissão Europeia, o prazo de dez anos corresponderia ao prazo médio de maturidade dos débitos.

Note-se, no entanto, que, de forma coerente com a sua sistemática incremental, a ACE proposta está sujeita a uma regra de neutralização (recapture rule). Na hipótese de o contribuinte vir a reduzir os valores das suas contas patrimoniais, e já tendo ele se beneficiado com o ACE anteriormente, o valor até então deduzido deverá ser adicionado à base de cálculo dos tributos sobre a renda corporativa pelo período de dez anos consecutivos, até o limite do benefício concedido, de forma a neutralizar o seu efeito tributário.

A proposta trouxe ainda regras antielisivas específicas destinadas a evitar que contribuintes venham a se utilizar de arranjos ou negócios para se aproveitar dos benefícios decorrentes da ACE em situações impróprias. Tais regras ensejam a desconsideração de acréscimos realizados nas contas de patrimônio líquido da empresa que sejam decorrentes de determinadas operações intragrupo e contribuições feitas com origem em jurisdições sem troca de informações.

A finalidade das referidas regras é evitar operações que levem ao “efeito cascata” em que uma mesma despesa de ACE, decorrente de um único incremento patrimonial, seja deduzida múltiplas vezes, em diversas jurisdições distintas.

O segundo componente da proposta europeia consiste na introdução de uma regra de limitação de dedutibilidade correspondente a 85% dos excessive borrowing costs, ou seja, a diferença positiva entre as despesas e as receitas com juros. Assim, tendo a empresa incorrido em mais despesas do que receitas financeiras, 15% do montante excedente será considerado totalmente indedutível.

Como se vê, embora as NID adotadas por diversos países membros da União Europeia e a Proposta de Diretiva “DEBRA” da Comissão Europeia não sejam idênticas aos JCP – especialmente porque aquelas seguem uma metodologia incremental, enquanto este possui uma metodologia em que o benefício é concedido independentemente do incremento verificado nas contas patrimoniais – ambas perseguem uma mesma finalidade legítima: limitar o viés pró endividamento oriundo do sistema de tributação sobre a renda.

Da perspectiva indutora, os JCP brasileiro têm a virtude de não apenas induzir à constante capitalização (afinal, a base de cálculo dos JCP é majorada), como também a manutenção de capitais na empresa (porquanto se admite a dedução de JCP independentemente do incremento nas contas de patrimônio).

Mas além de uma perspectiva teórica, estudo recente conduzido por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV) demonstra que a adoção dos JCP cresceu substancialmente a partir de 2003. O referido estudo concluiu que o mecanismo foi responsável pela diminuição do grau de alavancagem das companhias de capital aberto integrantes do Novo Mercado.

Portanto, a revogação integral dos JCP representa grave retrocesso na política fiscal, pois desconstrói um importante instrumento que, ao reduzir a alavancagem das empresas brasileiras, contribui, comprovadamente, para o investimento no capital social das empresas e, consequentemente, para o crescimento da economia nacional.

É interessante observar que a exposição de motivos que acompanha o PL 4.258/2023 chega até mesmo a reconhecer que instrumentos semelhantes aos JCP são utilizados em outros países. No entanto, em vez de considerar a possibilidade de aprimorar os JCP a partir do estudo da experiência internacional, a optou-se pela sua revogação.

Certamente, discussões sobre o aprimoramento dos institutos jurídicos sempre poderão ser feitas, e a experiência europeia pode ser um ponto de partida. Mas a simples revogação do JCP, ainda que possa trazer algum aumento imediato de arrecadação, seguramente não é a solução mais adequada para o equilíbrio das contas públicas brasileiras, pois os efeitos deletérios da sua revogação superam os potenciais ganhos.

Para todo problema complexo, sempre há uma solução simples – e errada. Se o PL 4.258/2023 se mantiver tal como proposto pelo governo federal, esta máxima será, mais uma vez, confirmada.

Fonte: JOTA

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