Tributação de controladas no exterior: flexibilização da disponibilidade da renda?

Análise à luz da MP 1171/2023.

O primeiro semestre de 2023 foi marcado por diversas alterações legislativas de substancial impacto para os contribuintes. Ainda que a maioria não seja definitiva, visto que realizadas por medida provisória, é dever do operador do direito lançar luz à legalidade – ou não – das mudanças, até mesmo para subsidiar o debate público e especializado sobre os temas e compreender melhor as discussões travadas no Congresso Nacional quando da análise das MPs.

Dentre as mudanças, uma demandou especial atenção pela significativa alteração do modelo atual. Trata-se da tributação da renda auferida por pessoas físicas residentes no Brasil decorrente dos lucros de sociedades controladas no exterior, objeto da MP 1171/2023, mais especificamente dos artigos 4º a 6º.

Se antes a tributação ocorria somente no “pagamento, crédito, emprego, entrega ou remessa ao beneficiário”[1] (sócio residente no País), a MP 1171/2023 se embasou nas recomendações da OCDE – as denominadas regras CFC – para prever que, em casos específicos, a incidência fiscal se daria de forma anual e diretamente sobre os lucros das sociedades ou equiparadas controladas no exterior, sem a necessidade da distribuição efetiva a pessoa física domiciliada no Brasil, com efeitos a partir de 1º de janeiro de 2024.

Nesse sentido, duas são as reflexões mais imediatas sobre o assunto, as quais estão umbilicalmente interligadas. Em primeiro lugar, a tributação dos lucros não distribuídos violaria o princípio da disponibilidade da renda, sobretudo se considerado o § 2º do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN)? E, caso seja afirmativa a resposta, o cumprimento de recomendações da OCDE e do Projeto BEPS poderia flexibilizar a análise da constitucionalidade das disposições legais analisadas?

Para poder subsidiar o estudo das alterações, deve-se, primeiramente, buscar compreender os elementos que compõem o conceito de renda. Pouco se extrai do topo da pirâmide normativa, dispondo o artigo 153 da Constituição Federal – CF sobre a competência da União de instituir imposto sobre a “renda e proventos de qualquer natureza”, o qual deverá respeitar os critérios “da generalidade, da universalidade e da progressividade” (§ 2º).

Partindo para a seara da legislação complementar, o artigo 43, I, do CTN, dispõe que renda é “o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”, sendo complementado pelo inciso II, que inclui na hipótese de incidência os “proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”.

O que importa, para os objetivos desse breve ensaio, é a positivação da necessidade de “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” da renda ou dos proventos de qualquer natureza para se poder falar em incidência tributária, o que provém do princípio da capacidade contributiva.

Ora, considerando que o recolhimento tributário é a obrigação de entregar pecúnia ao Estado, a disponibilidade deve ser entendida como o momento em que o contribuinte pode dispor daquela renda ou provento para realizar o pagamento do imposto – ou qualquer outra destinação que lhe aprouver.

E é nesse contexto que deve ser analisada a disposição do § 2º do artigo 43 do CTN. Segundo a norma, incluída pela Lei Complementar 104/2001, “(n)a hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade”.

Independentemente da regra que venha a ser estabelecida, ela deve guardar correspondência, como visto, com o princípio da capacidade contributiva, que impõe, para fins de incidência do imposto de renda e de provento de qualquer natureza, a existência da disponibilidade ao contribuinte. Sendo assim, entende-se que a lei poderá definir o momento que se entende disponíveis os rendimentos oriundos do exterior, porém, sem desconfigurar o próprio significado de disponibilidade e o necessário respeito aos princípios constitucionais.

Na hipótese em análise, a medida provisória pretende tributar “os lucros apurados (…) pelas entidades controladas no exterior (…). Poderia se imaginar, e certamente esse será o argumento das Autoridades Fiscais, que a existência de controle pela pessoa física residente no Brasil representaria a disponibilidade, mas entende-se que o argumento não se sustenta, na medida em que não há disponibilidade irrestrita.

A existência de lucros não pressupõe a obrigatoriedade de distribuição – ou até mesmo a possibilidade de assim o fazer. A hipótese é tão insustentável que, para se aferir se o controle – conforme os critérios definidos na medida provisória – seria suficiente para deliberar acerca da distribuição (ou não) de lucros, haveria que se investigar a forma que as centenas de jurisdições mundo a fora disciplinam a matéria – inclusive eventuais vedações, como a Lei 11.101/2005, que impede a distribuição de dividendos em empresas submetidas ao regime da recuperação judicial, até a aprovação do respectivo plano de soerguimento.

Em outras palavras, aparenta-se que não há disponibilidade econômica – que se configuraria com a efetiva remessa dos rendimentos distribuídos – nem a jurídica, que ocorreria com a deliberação favorável, em ato formal, pela distribuição dos lucros auferidos pela sociedade ou equiparada no exterior.

Todavia, como visto, as novas regras se originam de uma série de recomendações, inicialmente feitas pela OCDE no relatório “Harmful Tax Competition: An emerging global issue”[2]e posteriormente encampadas no projeto BEPS, com o objetivo de evitar a alocação de atividades financeiras para países com tributação favorecida. Para além disso, as normas só são aplicáveis em duas hipóteses, quais sejam, quando as sociedades (i) estejam localizadas em país ou dependência com tributação favorecida ou sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado (…)” ou (ii) “apurem renda ativa própria inferior a 80% (oitenta por cento) da renda total”. Nesse sentido, poderia se falar nas recomendações internacionais como fundamento de validade da MP n.º 1.171/2023?

A discussão já foi realizada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI 2588/DF. Em análise da MP 2158-35/2001, especialmente do artigo 74, que previa a tributação dos lucros de coligadas ou controladas no exterior por pessoas jurídicas sediadas no Brasil, os Ministros entenderam que a norma seria parcialmente constitucional, devendo haver limitação de sua incidência aos lucros auferidos por controladas sediadas em países de tributação favorecida, conforme definição em lei.

Segundo o Ministro Joaquim Barbosa, que capitaneou a linha acolhida pela maioria dos componentes, duas questões pautariam o debate. A primeira é se “o alegado temor de abuso com vistas à evasão ou a à elisão fiscal autorizariam o Estado a atalhar o devido processo legal”, que deveria ser seguida da reflexão sobre o texto constitucional e a possibilidade deste “evoluir para acompanhar as mudanças sociais e, com isso, garantir certas expectativas fiscais”.

Em relação à primeira, o ministro é enfático ao destacar que “(…) inexiste qualquer relação necessária entre o dia 31 de dezembro de cada ano e a disponibilização de recursos provenientes de participações nos lucros e nos resultados de investimentos” e “(n)em mesmo os tortuosos jogos de palavras com as expressões “disponibilidade econômica” e “disponibilidade jurídica” são capazes de escamotear essa dissociação”.

Todavia, o ministro prossegue o seu voto no sentido de que, com a evolução das técnicas de alocação de renda em países considerados como “paraísos fiscais”, as garantias do devido processo legal devem guardar correspondência com a efetividade dos instrumentos de fiscalização, concluindo pela possibilidade de presunção de evasão e, consequentemente, aplicação da regra do artigo 74 da MP 2158-35/2001, quando a controlada estiver sediada em país com tributação favorecida. Se não for esse o caso, “a autoridade tributária deve argumentar e provar a evasão fiscal, isto é, a ocultação do fato jurídico tributário ou da obrigação tributária”.

Veja-se que a interpretação respalda apenas parte das alterações que a MP 1171/2023 busca implementar. Isto é, se as razões de decidir do acórdão do Supremo legitimam uma regra de flexibilização da aquisição de renda no caso de controladas nos denominados paraísos fiscais, o mesmo não se pode dizer em relação àquelas que possuem “renda ativa própria inferior a 80% da renda total”.

Ora, além de o elemento quantitativo do critério (80%) ser altamente discutível, é fato que, se a controlada não está situada em país com tributação favorecida, a renda dela, ainda que seja parcialmente passiva, está sendo devidamente tributada em jurisdição que não pratica a suposta competição fiscal internacional abusiva.

Dessa forma, por se tratar de tema bastante complexo e relevante para os contribuintes, principalmente considerando as observações acima realizadas, leva-se a crer que tais alterações legislativas deveriam se submeter à ampla apreciação do Congresso Nacional e não no curto prazo destinado à avaliação de medidas provisórias, as quais, aliás, apenas poderiam ser adotadas para tratar de casos de extrema urgência.


[1] Art. 1º, § 1º, da Instrução Normativa da SRFB 208/2002.

[2] OCDE. Harmful Tax Competition: An emerging global issue.

Fonte: JOTA

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