Novo Perse: dilema entre arrecadação e isonomia tributária

Viés arrecadatório acabou por prevalecer sobre o cunho jurídico da Lei 14.859/24

Publicada no último dia 23 de maio, a Lei 14.859/2024 altera pontos importantes do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse): (i) retira 14 atividades da lista originalmente prevista na Lei 14.592/2023[1]; e (ii) estabelece novas limitações à fruição dos correspondentes benefícios fiscais.

Em resumo, os benefícios fiscais ficam limitados às pessoas jurídicas (i) que, em 18 de março de 2022 – data da derrubada dos vetos ao benefício –, tivessem como CNAE principal ou atividade preponderante (de maior receita bruta) uma das atividades econômicas expressamente listadas na norma; e (ii) que apresentaram alguma atividade – operacional ou não – durante os anos de 2017 a 2021, ainda que tal atividade não tenha se desenvolvido no setor de eventos.

Para os anos de 2025 e 2026, pessoas jurídicas no lucro real ou arbitrado só terão direito à alíquota zero de PIS e Cofins, devendo apurar regularmente IRPJ e CSLL. Pessoas jurídicas no lucro presumido, por outro lado, têm preservado o benefício integral – de IRPJ/CSLL/PIS/Cofins – pelo prazo original de 60 meses.

As pessoas jurídicas elegíveis devem se habilitar perante a Receita Federal. No momento de habilitação, pessoas jurídicas no lucro real devem informar se preferir usufruir da alíquota zero ou fazer uso dos prejuízos fiscais acumulados – com a trava de 30% – e do desconto de créditos de PIS e Cofins.

Com relação a valores de CSLL, PIS e Cofins eventualmente recolhidos em virtude do art. 6º da MP 1202/2023, que revogou a alíquota zero dessas contribuições até a edição da Lei 14.859/2024, há previsão de compensação com débitos próprios ou ressarcimento em espécie mediante solicitação.

Como resultado da negociação com o Executivo, a lei limita o custo fiscal do gasto tributário com o Perse. Entre abril de 2024 e dezembro de 2026, o programa poderá atingir o custo máximo de R$ 15 bilhões, com a possibilidade de extinção automática dos benefícios no mês subsequente ao atingimento do limite. Há referência à possibilidade de se considerar no limite os valores objeto de discussão judicial não transitada em julgado.

As alterações trazidas buscam o meio termo entre a extinção do Perse (conforme proposto pela MP 1202) e a manutenção dos benefícios fiscais da Lei 14.148/2021. Trata-se, portanto, de modelação do programa para restringi-lo às pessoas jurídicas (em tese) mais diretamente relacionadas ao setor de eventos e garantir um volume mínimo de arrecadação pela União.

Não obstante a iniciativa, há pontos questionáveis decorrentes da própria limitação de escopo do Perse e dos requisitos do novo regramento. O primeiro deles parte da discussão sobre a possibilidade de alteração de benefício fiscal concedido por prazo certo e em função de determinadas condições.

Nos termos do art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN), isenções concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições não podem ser revogadas ou modificadas por lei. Na linha das decisões obtidas por contribuintes em esfera judicial, mesmo no contexto da Lei 14.859/2024 o referido dispositivo pode ser suscitado para o questionamento da legalidade da revogação (em alguns casos) e modificação (com limitação de benefícios fiscais em outros) do Perse.

Adicionalmente, a norma fere a isonomia entre contribuintes de um mesmo setor, que passam a ter tratamento desigual a despeito de se encontrarem em situação equivalente. Há, nessa linha, margem para questionamento da Lei 14.859/2024 com base no art. 150, inciso II, da Constituição Federal.

Com efeito, não há qualquer clareza acerca do critério utilizado para a exclusão de determinadas atividades também afetadas durante a pandemia do rol de CNAEs elegíveis ao programa – como, por exemplo, as atividades de albergues e campings – e manutenção de outras atividades similares – como de hotelaria.

Outro ponto discutível é a diferenciação feita entre as pessoas jurídicas optantes pelo regime do lucro presumido e optantes do lucro real. Ao limitar o benefício fiscal do Perse à alíquota zero de PIS e Cofins nos anos de 2025 e 2026 para as pessoas jurídicas no lucro real, a lei faz nova diferenciação objetiva sem proposição de análise casuística, ferindo princípios da igualdade e livre concorrência.

A ampla restrição do benefício para o regime de lucro real – sem ponderação de quaisquer outros elementos financeiros – tem natureza meramente arrecadatória, uma vez que atinge de forma irrestrita as pessoas jurídicas cujo faturamento excede R$ 78 milhões. Vale ressaltar que as pessoas jurídicas no lucro real possuem ainda a obrigatoriedade de indicar se farão uso de prejuízos fiscais acumulados e de créditos de PIS e Cofins ou da redução a zero das contribuições, o que pode causar o esvaziamento do programa para essas beneficiárias e causar maior distorção entre os participantes de um mesmo setor econômico.

As referidas limitações parecem ignorar o fato de as pessoas jurídicas optantes pelo lucro real também terem enfrentado queda de faturamento e lucratividade no período da pandemia, além de terem assumido compromissos – com a contratação de colaboradores e fornecedores – e realizado investimentos – de expansão e/ou renovação – considerando a fruição dos benefícios originais do Perse.

Sob a perspectiva concorrencial, a enorme disparidade de carga tributária que será estabelecida entre pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido e pelo lucro real pode trazer impactos significativos ao mercado, com prejuízo para empresas que desempenham papel relevante na economia brasileira.

O prejuízo é similar àquele verificado pelas empresas originalmente enquadradas e que foram excluídas do programa sem maiores justificativas, as quais devem voltar a enfrentar dificuldades para retomar o patamar econômico anterior.

Em conclusão, o viés arrecadatório acabou por prevalecer sobre o cunho jurídico da Lei 14.859/2024 e os esforços do Executivo e do Congresso Nacional para a redução do gasto fiscal com o Perse trouxeram inconsistências que abrem arestas para o questionamento judicial da norma. Ao fim e ao cabo, a forma adotada pelo governo para reduzir – a qualquer custo – a conta do programa dá aos contribuintes relevantes subsídios para o pleito de manutenção dos benefícios fiscais originais e pode, consequentemente, não atingir o resultado financeiro esperado.


[1] São elas: albergues, exceto assistenciais (5590-6/01), campings (5590-6/02), pensões (5590-6/03);  outros alojamentos não especificados anteriormente (5590-6/03); produtora de filmes para publicidade (5911-1/02); serviço de transporte de passageiros – locação de automóveis com motorista (4923-0/02), transporte rodoviário coletivo de passageiros sob regime de fretamento, municipal (4929-9/01); transporte rodoviário coletivo de passageiros sob regime de fretamento, intermunicipal, interestadual e internacional (4929-9/02); organização de excursões em veículos rodoviários próprios, municipal (4929-9/03); organização de excursões em veículos rodoviários próprios, intermunicipal, interestadual e internacional (4929-9/04); transporte marítimo de cabotagem – passageiros (5011-4/02); transporte marítimo de longo curso – passageiros (5012-2/02); transporte aquaviário para passeios turísticos (5099-8/01); e atividades de museus e de exploração de lugares e prédios históricos e atrações similares (9102-3/01).

Fonte: JOTA

Compartilhar

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp

Postagens relacionadas